Thursday, March 15, 2007

CARBOLITIUM

K. não estava bem. Era necessário silêncio; qualquer barulho tem que ser permitido e administrado. Na mesa o jornal. Ainda sem lavar o rosto, K. lê que a cidade conta com muitos homens e mulheres sofrendo pela falta de carbonato de lítio. "Tudo anda mesmo sem sentido, sem norteamento, as pessoas mergulharam na síndrome religiosa de trabalhar 14 horas por dia", diagnosticou K. com ironia. Como exímio conhecedor de segredos horrendos, K. sabe até que uma linda enfermeira e suas amigas partilham do Carbolitium e vêm nele uma espécie de socorro para quem não suporta mais nada. O imenso teatro de loucos está sempre aberto e com peças longas, enormes. São peças que têm como trama o transtorno eterno de multidões que não sabem mais o que é, o que vai e o que foi. Não existem mais portos seguros. Nunca tudo foi tão permitido como hoje, mas nada foi tão escorregadio, insólito e neurotizante. Antes havia uma ditadura ortodoxa. Agora a ditadura é heterodoxa. Usam até mesmo filósofos como Nietzsche para afirmar que tudo sempre será amplamente relativo. Todos têm medo de assumir uma postura.
Bem, voltando ao amanhecer de K., o sol estava lindo. Um vento bate com frescor em sua face. Foram cinco dias sem dormir. O cigarro tornou-se um adorno fixo nos lábios. K. não ria. K. lembra-se de que Hilda Hilst usara a palavra cu várias vezes. "Cu de mundo", era a única sentença proferida em voz baixa. Até Manuel Bandeira, "aquele tuberculoso tarado", usou - ninguém imagina que Bandeira fosse tão conhecedor de vários. K. marcha rumo ao Ponto do Café sob o rítmo frenético do mantra: "cu de mundo". E chega K. ao balcão. Uma balconista saca logo uma pergunta, como se saca uma pistola: "nossa, K., você está tão triste, o que foi?" E o homem dos mantras imundos manda bala: "é o lítio". K. sempre vai tomar café ali e portanto conhece as balconistas. Tem dias que tudo está azul, como flores, como cartão postal de praia nordestina. Outros dias estão como o inferno, o mundo vira um cu. "Nossa, K., eu não sabia que... K., você é viado"? K. ficou parado, perplexo e respondeu com tosse: "não, lítio é remédio e não um homem". A balconista logo mostrou-se tranquilizada. "Ah, tá com dor de cabeça, né?".
Interessante que K., enquanto sorvia a borra preta, pensava sobre o estigma de sua doença e sobre o desconhecimento da balconista. "Sempre escondi esta nhaca, merda de herança familiar e agora leio nos jornais da falta de psicotrópicos por causa do aumento da demanda, está na moda ser deprê?". K. sente ciúmes, sente ser proprietário da "nhaca". Doença silenciosa, K. também a batizou de "Peste". Milhares e milhares sofrem de "Peste". Mas K. volta pra casa, precisa de um banho. No meio do percurso, com olheiras enormes, dentes amarelados e barba por fazer K. esqueçe-se do mantra e volta gargalhando da balconista. (Geraldo Magela)

3 comments:

Patrícia Gomes said...

Esse eu gostei tanto, foi tão claro e direto ao ponto que tomei a liberdade de postá-lo em meu sítio no multiply... ;o)
Beijo, Grandão!!

Ricardo Mainieri said...

Gostei "um monte" deste texto.
Seco e explosivo como dinamite.
Revolve o âmago do humano, o dark side de todos nós.

Abraço.

Ricardo Mainieri

vaca said...

demais, bateu completamente com a idéia da minha banda, tomei a liberdade de divulgar sua obra no nosso site, muito bom, nunca pare, abraços

Marlon Cerqueira
Banda Karbolythium