Sunday, April 29, 2007

BILHETE PARA LUA


K. vive sonhando. É seu ofício. Sonhar é como ficar à beira de um rio caudaloso, esperando que algo belo passe, algo que possa ser fisgado. Um motivo que dê esperança; ou dor. Uma flor no meio de uma metrópole poluida é motivo de poetar. Não há outra saída para K.: escrever. Ir até as vísceras. Mergulhar fundo na alma. Mas o que anda mesmo deixando K. espasmado é uma tal Lua. Misteriosa, alegre, senso crítico aguçado. E K., como recomendava Nietzsche, perguntava como criança: será que ela gosta de mim? Será que ela um dia vai me ver? K. às vezes sentia-se um idiota, começava a rir, sozinho, a ponto dos transeuntes ficar olhando com olhos arregalados para ele. Tomou banho de chuva para ver se, numa espécie de sessão mágica", captasse o ser de Lua. Mas não há mais nada a fazer. Até mesmo ficava rimando pobremente Kundera, bela, Kundera, bela.Tudo depende da Lua. Tudo. Numa insustentável leveza do mistério. (Geraldo Magela)

PEDRA E ALMA

No meio da pedra havia material mineral duro e sólido. Naquela manhã ensolarada não havia poesia. Um homem de dentes podres, fedido e com o rosto escondido atrás de uma barba longa e empiolhada atirara uma pedra na portaria; estilhaços de vidro fizeram uma constelação no chão brilhante. Uma senhora estava apavorada "meu bondoso Deus, como anda a violência". Uns tres homens riam da cena quando uma senhorita assustada, segurando seu cãozinho, passara em direção ao carro estacionado. "Vejam só os seios dela, apontados pra lua, que gostosa", julgaram os tres canalhas. O mendigo gritava: "eu quero café com leite e um pão de sal com manteiga". Mais uma pedra na mão. Os porteiros permaneciam com medo. Não restou outra saída a não ser chamar a polícia. O odor daquela área nobre era delicioso, cheiro de limpeza. Os prédios tinham nomes chiques: Havaí, Paris, Washington, Miami, Londres. A polícia nem fez soar as sirenes. Ouviu os populares e os que estão inclusos na classe média alta. Veredictum: o mendigo ia ser levado para o xadrez. E lá foi ele. Aos gritos: "quero pão de sal com manteiga e café com leite". Ao virar a esquina, os porterios varrem os estilhaços. Tudo voltou ao normal. Naquele prédio tinha moradores que lutavam pelos animais que ficavam perdidos, abandonados na rua. Não é demagogia, é realidade. Aquela senhorita de peitos lindos e com marquinhas de praia, gasta cerca de R$ 600,00 ao mês para sustentar Sansão, seu amado cachorrinho.
Ao chegar no quinto distrito, o mendigo foi jogado numa cela. Estava na hora do almoço, do rango. Ganhou a quentinha e, esfomeado, meteu os dentes podres no feijão. E mordeu uma pedra, pequena. Cuspiu a pequena pedrinha. Pedra que pode ser poesia. Mas no meio de um homem há uma alma. Em todos homens há uma alma. Inclusive os filósofos e teólogos cristãos vivem afirmando.(Geraldo Magela)

Monday, April 16, 2007

MÔNICA

O sol acabara de retirar do mundo o manto negro da noite - não era o manto negro que Schopenhauer cobrira a Europa. Apesar do sol amarelo, um vento frio soprava a tez de K., que olhava as coisas como elas são. Como se estivesse escapado do fundo de uma caverna. Tudo virou bolinha de sabão, pipa colorida, festival de sorvete. Lembrando da cor da pele de Mônica, cor-de-gelo, branca, clara. Planos para fugir. Uma casa no meio de um hectare de chão, de terra vermelha. Árvores com pássaros, altas, fortes e que espalhassem cheiros pelo ar. K. nunca imaginara que alfaces e couves e jilós aparando o orvalho ou gotas de água pudessem simbolizar um grande amor.Montanhas, horizonte azul. Mônica era o sonho que seria visto, apalpado. Mas era um sonho incrivelmente possessivo. Como o sol e a noite, as estações do ano. Como o calendário gregoriano. Como a rotação da terra. Imperativo. A voz feio maça de Mônica disfarça sua incrível sede de amar e fincar a bandeira da posse: "é meu". K. é uma vastidão, um campo de terras vazias onde um vento sempre assobia canções misteriosas, solitárias.
Mas K. seguiu até ao local do encontro. Os pêlos no seu peito grudavam no suor, como se ele derramasse a adrenalina de um adolescente. Horas desencontradas. A falta de harmonia no encontro mostrava às claras como eram desjustados. Até que uma rosa vermelha tatuada nas costas alertou K. que aquela era Mônica, a moça que queria ser amada intensamente. Aquele era K. que intensamente sofria a dor dos desamores. Ela abraçou, revelou-se. Ela beijou K. como se estivesse num set de filmagem. Conversaram a tarde inteira sem perturbar a vizinhança. K., bem mais velho que Mônica, no final do encontro surreal, voltou como um adolescente para o fundo da caverna. Mônica voltou feliz, como se tivesse mordido a pêra doce e suculenta: a liberdade ser , de amar. Mônica tatutou na sua pele a rosa vermelha que sempre era para receber de K.. . vermelho de Espanha, das touradas, da adrenalina, do amor naturalmente livre de tudo.(Geraldo Magela)