Thursday, August 31, 2006

TECELAGEM

Sempre com silêncio, apartado das rodas. O único lugar que deu margem para se sentir à vontade foi numa biblioteca. O barulhinho vindo da lâmpada, a janela aberta dando vista para uma estrada de terra cortando o verde do horizonte. Atrás do balcão a bibliotecária: 'dona' Totinha. Nunca se soube o nome de batismo dela. Era rigorosamente motivo de piadas entre os estudantes: 'dona' Tortinha. Ela era estrábica. Todos os dias, sem hipótese alguma de falha na memória, ficava tecendo roupinhas para crianças. Rolos de fios de lã de todas as cores possíveis. Seus dentes pareciam triturar um eterno amendoim.
Longe das rodas, dentro da biblioteca da 'dona' Totinha, ele encontrou Kafka, Tólstoi, Drumond, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice Lispector e uma multidão de fantasmas. Sofria porque não conseguia entender A Carta ao Pai, do Kafka. Já falavam pelos corredores que ele tinha uma "mania meio louca" de ver o mundo. A professora de Ensino Religioso ficou perplexa quando soube que o garoto ia para um seminário pleitear uma vaga de sacerdote. "Mas esse menino fala em comunismo, que Deus não existe!", afirmou para uma inspetora da escola. O mancebo queria apenas tentar entender como é esse Deus em que todos crêem e que nunca é obedecido; que matam em nome dele e erguem coisas feias e horrorosas para proteger suas "palavras". Até hoje ele traga a dor do nada, busca entender o absurdo que é o mundo, as humanidades, os homens. Continua tecendo o fio da meada, mas não consigue formatar nenhuma conclusão que o precipite para a paz que a clareza da verdade pode nos dar. Queria muito poder se afastar para bem longe do fundo da caverna, como contava Platão, para que um sol ilumine tudo.
No último retorno à sua terra natal, descobriu que 'dona' Totinha havia ido embora para sempre. Resolveu ir até a biblioteca da escola. Entrou e ficou estático, olhando para o balcão. Ali não é mais biblioteca. É um depósito de objetos que não fazem mais sentido no mundo moderno.
Ficou sabendo também de que ela morreu sozinha. Encontraram no seu quarto muita, mas muita roupinha de criança tecida com fios de lã, de todas as cores. Não chorou, seria clichê. Apenas ficou rindo - por dentro, apesar de Fernando Pessoa jurar que não existe "por dentro" e nem "por detrás". E retornou para casa, para bem perto dos seus milhares de livros, de fantasmas. Em meio a tantos manuscritos vai continuar tecendo sua existência espasmadamente repleta de absurdos, devaneios e aventuras. Ainda taxado de "louco" por alguns, "mito" por uns outros" e diante do espelho: "você não é nada, espero que o meu processo se encerre com um fim. E que se cumpra Guimarães Rosa: "ninguém morre, ficamos encantados". Ele está se sentindo quase dentro de uma Fortaleza: quer devanear, vagamundear. (Geraldo Magela)

Wednesday, August 16, 2006

SÍSIFO

Os sons da manhã me deixam nauseado. Ônibus, carros e saltos de sapatos femininos. A água sagrada chocando contra o meu teto: o vizinho do andar superior preparando-se para fazer o mundo continuar funcionando. As edições dos jornais sensacionalizam o dia: violência, eleições, o time popular lutando contra rebaixamento, sexo, cães, gatos, arquitetura e milhares de fragmentos. Uma foto interessante: uma criança olha em direção a um buraco no vidro da janela. Da minha janela avisto a faxineira varrendo o estacionamento. Homens e mulheres retornando para casa, suas cidades sujas, destruídas. Deflação, bolsas de valores, lucros, balanças comerciais. Nenhum verso.
Velhos empurram seus corpos em direção aos hipermercados. A TV começa a ser inundada de receitas de macarronada italiana, dicas para deixar o corpo saudável, para fazer o apartamento ficar mais "verde" e aconchegante. Jovens com calças rasgadas e cabelos arrepiados vão em gangues, entre muros criptograficamente grafitados, abusar e sarrear a cara dos mestres que não se consideram mais "a luz do saber" de ninguém. Um carro pára, um cara sai, o som do rap é alto, o tênis Nike denuncia que a revolta dos pobres virou mercadoria nas mãos da classe média. O bairro mais nobre está deliciosamente quieto. Toda cidade tem seu bairro bairro nobre com cheiro diferente. O céu está azul e alguns pássaros voam em direção a não-sei-aonde.
Um absurdo. Aliás, o mundo é um absurdo. Tudo permancerá como sempre, substancialmente. Traições, mentiras, dores, desemprego, falta de amor, solidão. Mas haverá alegrias. Haverá sussurros, paixões, declarações loucas de amor. Morte e batismos. Nada além, nada aquém. A imprensa vai maquear a realidade com sensacionalismo. O planeta continuará em sua orbita corriqueira. Dizem as más línguas que o sol está iniciando seu processo de "apagamento". Como será o mundo sem luz? (Geraldo Magela)

Wednesday, August 09, 2006

"A PROVA"

Os dedos das mãos conotavam capítulos difíceis na vida. Um esmalte vermelho corroído lutava contra feridas causadas pelo trabalho doméstico. Me lembrei do Melodia cantando "lava roupa todo dia, que agonia...". Uma tristeza e um orgulho eram repassados por aquela senhora de cabelos mal tratados. Um final de frase: "pelo menos não devo nada a ninguém". Acabei ouvindo a conversa silenciosamente, tentando ouvir com nitidez os sussurros. "Minha filha, a senhora não vai acreditar, surrou meu marido ontem, com o cabo da vassoura". A jornaleira lembrava a layout de páginas amarelas e ficou perdida, sem saber o que fazer e falar. "Mas o meu marido ficou calado. Ele queria saber o motivo da filha não estar estudando e continuar dormindo com o namorado". A conversa, curiosamente, era travada perto de duas revistas que tinha a ver com o assunto: O filme "A Prova" vale pela interpretação de Gwyneth Paltrow", era título de uma; "Chegou a hora do primeiro amor", chamava a outra para uma leitura "classe-média alta" de mundo. Uma mãe abraçada com a filha, bem vestidas, sorrindo. Um psícologo aconselhava a mãe a preparar a filha para a primeira noite de sexo. O filme dirigido por John Madden, o mesmo diretor de Shakespeare Apaixonado, é um melodrama baseado na peça de David Auburn, que fez muito sucesso na Broadway. Trata-se da história de um matemático (Anthony Hopkins) que enlouqueceu e durante o período que ficou em clausura escreveu uma quantidade enorme de cadernos. Na clausura ele recebeu os cuidados da filha (Gwyneth Paltrow). Nesse período ele escreve uma quantidade enorme de cadernos. Depois da morte do matemático, um estudante (Jake Gyllenhaal) tenta descobrir nas anotações deixadas uma fórmula reveladora matemática que seja importante para o futuro da ciência. Nada que possa relacionar-se com o contexto da senhora batalhadora. A senhora continuou desabafando até chorar. Não tem acesso a informações. Não consegue fazer uma leitura crítica da realidade. Nem sabe o que é hedonismo. Nem sabe o que o capitalismo andou fazendo com o velho Movimento Feminista, nem sobre ethos, cultura. Nunca irá ler sobre "adolescentização" e "feminização" do mundo. Vai apenas sofrer até o último minuto de vida. Sem sensualidade, prazer e tempos mais longos de alegrias. Não poderá colocar nada sob suspeita. Acompanhei sua saída, seus passos lentos. Entrou para dentro de um templo católico e deve ter conversado muito com Deus. (Geraldo Magela)

Tuesday, August 08, 2006

"VERDADE TROPICAL"?


Dois fragmentos de declarações do Caetano para a revista Cult


Primeiro - "Eu sou um grande admirador dos Estados Unidos, não tenho raiva nem ressentimento. Não acho que nossa miséria é uma conseqüência da maldade, do egoísmo deles. A nossa miséria é resultado da nossa própria incompetência, e a grandeza deles é conseqüência da competência deles, que se expressou na visão espetacular dos fundadores da democracia americana. Muita gente diz que o povo brasileiro tem um grande ressentimento contra os Estados Unidos, que se sente oprimido e que tem vontade de dar o troco. Houve até quem aplaudisse a derrubada das torres do World Trade Center. Uns, publicamente, outros, à surdina, mas não que eu não ficasse sabendo. E, possivelmente, muitos eu não soube. Mas, por outro lado, o Brasil é um país onde as pessoas pobres batizam seus filhos com nomes de Jefferson, Washington, Wellington, o que eu acho maravilhoso. Quando vai modernizando coloca Michael, por causa do Michael Jackson. Eu acho que isso quer dizer muita coisa e de certa forma, fala de algumas regiões mais profundas da alma brasileira do que essa raivinha impotente contra os Estados Unidos".

Segundo - "Outro dia tive uma discussão com MVBill a respeito disso. Ele estava se reportando a um embate que teve sobre essa questão com o Arnaldo Jabor, que estava numa posição oposta à dele. Eu acabei não me contendo e iniciei uma discussão, onde eu queria fazê-lo ver que ele precisava levar em conta que grande parte do que é, não só movimento de consciência da questão racial, como o movimento específico do hip hop, ao qual ele se filiou, tem muito do desejo brasileiro exposto em várias áreas de ansiosamente imitar os americanos. E, de certa forma, com isso, se reafirmava uma humilhação dos brasileiros perante os americanos, o que não difere da humilhação dos negros perante os brancos. Há alguma coisa aí que fica de fora quando a pessoa não coloca certos elementos na equação. Eu pedi a ele que pusesse".

Friday, August 04, 2006

JORNAL DAS PEQUENAS COISAS


Achei, como uma borboleta, um argonauta navegando sem rumo, um canto de jardim. Ela é simples, mas profunda. Talvez eu tenha sentido a mesma emoção que Guimarães Rosa sentia quando via flores solitárias no campo. O vento soprando e embalando suas pétalas. Beleza irradiantemente à espera de alguns olhos que querem a loucura de viver com simplicidade. Rita Apoena é o nome da poeta, dona de uma canteiro chamado Jornal das Pequenas Coisas. E não há como impedir que a alma seja invadida e tomada por tanta ternura. Depois da primeira leitura, lambi as alegrias que escorriam de dentro dos meus olhos para a ponta dos meus dedos. Fertilidade máxima: quis escrever como Rita Apoena. Parecem espasmos incrivelmente delicados, mas que nos transformam como a lua nova em cheia. Vou deixar um poema dela por aqui. Os outros estão postados lá no http://ritaapoena.zip.net/.

Metáfora

Sobre a janela
Então, quando você me beijar,
vai sentir o gosto da minha escrita,
pois a fim de nunca esquecê-las
eu trago todas as minhas palavras
na ponta da língua.

Tuesday, August 01, 2006

TEMPOS MODERNOS


"(...) o que me interessa frisar aqui é uma novidade qualitativa: não a “feminização” do “trabalho masculino”, mas o “tornar-se mulher” do trabalho em geral; não o fato de que as mulheres estejam tomando o lugar dos homens nas velhas fábricas, mas que — na produção contemporânea e nas formas eminentes de sua organização — trabalhar conjuga-se antes no feminino do que no masculino. E que, portanto, os próprios homens, para produzir, têm de algum modo de se feminizar.” (Antonio Negri).