Wednesday, August 16, 2006

SÍSIFO

Os sons da manhã me deixam nauseado. Ônibus, carros e saltos de sapatos femininos. A água sagrada chocando contra o meu teto: o vizinho do andar superior preparando-se para fazer o mundo continuar funcionando. As edições dos jornais sensacionalizam o dia: violência, eleições, o time popular lutando contra rebaixamento, sexo, cães, gatos, arquitetura e milhares de fragmentos. Uma foto interessante: uma criança olha em direção a um buraco no vidro da janela. Da minha janela avisto a faxineira varrendo o estacionamento. Homens e mulheres retornando para casa, suas cidades sujas, destruídas. Deflação, bolsas de valores, lucros, balanças comerciais. Nenhum verso.
Velhos empurram seus corpos em direção aos hipermercados. A TV começa a ser inundada de receitas de macarronada italiana, dicas para deixar o corpo saudável, para fazer o apartamento ficar mais "verde" e aconchegante. Jovens com calças rasgadas e cabelos arrepiados vão em gangues, entre muros criptograficamente grafitados, abusar e sarrear a cara dos mestres que não se consideram mais "a luz do saber" de ninguém. Um carro pára, um cara sai, o som do rap é alto, o tênis Nike denuncia que a revolta dos pobres virou mercadoria nas mãos da classe média. O bairro mais nobre está deliciosamente quieto. Toda cidade tem seu bairro bairro nobre com cheiro diferente. O céu está azul e alguns pássaros voam em direção a não-sei-aonde.
Um absurdo. Aliás, o mundo é um absurdo. Tudo permancerá como sempre, substancialmente. Traições, mentiras, dores, desemprego, falta de amor, solidão. Mas haverá alegrias. Haverá sussurros, paixões, declarações loucas de amor. Morte e batismos. Nada além, nada aquém. A imprensa vai maquear a realidade com sensacionalismo. O planeta continuará em sua orbita corriqueira. Dizem as más línguas que o sol está iniciando seu processo de "apagamento". Como será o mundo sem luz? (Geraldo Magela)

4 comments:

Unknown said...

Não haverá mundo sem luz, portanto aproveitemos a reta final dessa trajetória insignificante sobre a face da Terra. O absurdo é apenas o absurdo e quem tenta interpretá-lo acaba louco. O seu texto é real e perfeito, hoje pela manhã acordei com essa sensação, escutando pulsar o coração safenado da cidade, sem vontade de me mover na cama. Um abração e até sábado!

Unknown said...

Ué, parou mestre???

Márcia Nestardo said...

Fiquei sem luz faz alguns dias. Deixei atrasar a conta além do limite e cortaram. A geladeira que há tempos trabalhava pra esfriar uma garrafa d'água finalmente teve descanso.
Sem luz não tinha computador, não tinha blog nem bate papo. Descobri o tamanho da minha solidão. Sem eletricidade eu não tenho amigos.
Meu filho chegou da creche e chorou com a notícia de que não tinha luz porque não paguei a conta, mesmo podendo ver TV na casa da vó, não era o bastante pra ele. Queria a tranqüilidade do clique no botão que magicamente espanta o bixo-papão do quarto à noite.
Naquele fim de tarde, sentei no quintal consolando meu anjinho, tentando explicar que trabalhei sim pra ter o dinheiro, mas não ganhei o suficiente. Disse que às vezes lutamos muito, mas era preciso lutar mais um pouquinho. Contei pra ele que tem muita gente que trabalha a vida toda e vive no aperto, crianças que não ganham presentes e ainda trabalham no sol e no frio pra ajudar aos pais. Contei que falta trabalho pra muita gente que precisa comprar feijão, e como não tem trabalho, não tem feijão.
Naquele anoitecer enchi a casa de velas, deitei do lado do meu filho contando historinha de formigas e cigarras. Ele dormiu e eu chorei baixinho.
No dia seguinte o Sol, mais do que bem vindo marcou o vinco das minhas olheiras. Tive certeza: Não sei o que faria da vida sem a luz do Sol.

Cristiana Soares said...

Muito legal. Literatura, faça literatura, Magela...